Diversidade na TV?

Em artigo escrito para publicação especial do SescTV, falamos sobre a (falta de) diversidade da criança na televisão.

Abaixo, segue texto integral feito especialmente para a publicação:

Originária do latim infantia, a palavra infância carrega em sua raiz a ausência de fala – inremete a negativo, fari, falar. A programação infantil da televisão brasileira parece compactuar com a origem do termo, já que meninos e meninas pouco são representados na telinha, como se não tivessem rosto nem voz.

País com contingente de 60 milhões de crianças e jovens com idades entre zero e 17 anos, o Brasil infantil não se vê retratado em sua diversidade na televisão. Pouco (ou nada) conhecemos das realidades infantis – as tantas infâncias brasileiras – dos meios rurais ou urbanos em obras de não ficção – nem mesmo nas de ficção, bem mais abundantes.

Por onde andam as crianças que remam quilômetros em seus casquinhos (frágeis barquinhos da Amazônia) para chegar à escola, as que convivem com as manifestações populares, outras que são criadas e educadas por avós, aquelas que ainda hoje são mão de obra em olarias, meninos que entendem como ninguém como é que se encontra o eixo do giro de um pião?

Em tempos em que a programação infantil na TV aberta encolheu significativamente e migrou para os canais pagos, atraentes para a publicidade que vende de bonecas a estadias em resorts, a única infância que encontramos ao zapear a televisão é a da classe média, dos centros urbanos, ligada em aparatos tecnológicos, ávida por consumo. Os canais pagos, aliás, pareciam surgir como veículos para disseminar a multiplicidade de conteúdos, gêneros, vozes e expressões, mas isso até agora não aconteceu.

Também faltam obras de audiovisual que incluam a perspectiva infantil (e isso não quer dizer infantilizada) e sobram outros tantos que incentivam uma adultização precoce da infância, um conceito criado no Ocidente há poucos séculos e que parece sofrer de uma crise de “encurtamento”. Facilmente identificamos nesses programas temas do universo adulto, personagens que mais parecem consumidores do que crianças, cenas que parecem contribuir para uma sexualidade precoce.

Nesse deserto da programação infantil, chamam a atenção experiências pautadas por uma abordagem plural. O programa TV Piá, exibido na TV Brasil, busca incluir o protagonismo infantil nos episódios, garantindo o direito de as crianças manifestarem suas opiniões e pensamentos na televisão.

Outro bom exemplo é a série de microprogramas produzidos por cinco canais de TV latinoamericanos (incluindo um do Brasil) batizada de Senha Verde. No mosaico de histórias que tratam de meio ambiente, tema que por vezes mostra-se saturado, o espectador-criança se depara com as aventuras cotidianas de personagens reais como o menino Yohangel, da Venezuela, e a menina argentina Violeta. Nessas historietas ecológicas, de poucos minutos, podemos observar as similaridades e singularidades da infância.

No lançamento dessa série em São Paulo, Rogério Brandão, diretor de produção da TV Brasil, contou numa rodinha de poucos profissionais da área que o canal planeja se embrenhar pelo interior do país para mostrar a vida de meninos do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, e dos morros cariocas, por exemplo. Vale torcer para que o plano se concretize em pouco tempo.

A proposta repercute bem entre especialistas do audiovisual para a infância. Beth Carmona, que por anos foi responsável pela programação infantil da TV Cultura e hoje é presidente da associação Midiativa, ressalta a importância de as crianças verem seus pares retratados na TV. “Quando a criança vê histórias de crianças na TV, ela passa pelo entendimento de quem é, onde vive, a que mundo pertence”, afirmou certa vez numa entrevista. Sim, entender o outro é o melhor jeito de conhecer a si mesmo.

A realidade plural representada em obras de audiovisual de ficção e não ficção produzida em diferentes países, com destaque para a excelência das produções dos nórdicos, acaba dando as caras nos festivais, restritos a uma pequena parcela da população infantil. Hoje, no Brasil, destacam-se três boas mostras de audiovisual para crianças – Mostra de Cinema Infantil de Florianópolis, Fici (Festival Internacional de Cinema Infantil) e Prix Jeunesse Iberoamericano.

É nesses festivais – com produções da Suécia à Índia, do Quênia ao Japão – que as crianças podem desfrutar a pluralidade de histórias, geralmente pautadas por ângulos e abordagens que privilegiam o ponto de vista infantil. Assim, por enquanto, quem quer garantir às crianças o acesso a outras realidades infantis terá que desligar a TV e sair à procura da programação paralela – em setembro, o Fici estará com curtas e longas em cartaz em cinemas de São Paulo; fica a dica.

Gabriela Romeu: é jornalista e documentarista. Durante 12 anos escreveu sobre e para crianças no jornal Folha de S.Paulo, onde editou o caderno Folhinha. Foi idealizadora do projeto Mapa do Brincar e corroteirista do curta-metragem “Disque Quilombola”, documentário feito especialmente para crianças. É idealizadora do projeto Infâncias, que retrata a vida de crianças em diferentes lugares.